Livro - Retratos latino-americanos
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Texto de orelha: Existe, nas práticas de autoconhecimento das civi- lizações milenares, um postulado de que a men- te registra tudo aquilo que percebemos ao longo de nossa vida, desde a gestação. O acesso a tais memórias – um autêntico arquivo integral de uma vida, guardado na própria tessitura do corpo e do espírito – seria possível através de exercícios de in- ternalização da consciência. Memória fotográfica, diríamos. Nossa civilização tecnológica, que relu- ta em acreditar em afirmações desse jaez, recor- re a uma metáfora maquínica para exprimir uma faculdade semelhante – mas, ainda assim, parcial e hipotética. A apreensão e o armazenamento do conjunto de experiências sensoriais e mentais de uma pessoa, caso isso fosse factível tecnicamente, certamente implicariam uma quantidade de da- dos superior, em várias ordens de magnitude, à de qualquer sistema informático conhecido. Fato é que vivenciamos a memória como algo fugidio. A psicologia e a neurociência fornecem vá- rias explicações para a capacidade limitada da me- mória humana. E, apesar de avanços assombrosos, a nossa memória externa, contida em códigos escri- tos ou sistemas eletrônicos, também se depara com restrições muito evidentes. Seja qual for o suporte, o input de informações depende sempre da escolha de agentes humanos. Memória limitada, portan- to seletiva. O registro dos fatos passados, como se afirma lucidamente nesta coletânea, é muito menos reprodução e muito mais reconstrução. Por isso, ao abordar a escrita da memória como um artifício do discurso, este livro desvela as fron- teiras e os diálogos com outros gêneros e tradições literárias. Assim como as gestas de cavaleiros são tingidas de fantasia, as crônicas dos viajantes se valem também da retórica e da imaginação e a escrita do eu põe em perspectiva uma visão espe- cífica do fato narrado, a historiografia desenvolve um projeto social, político e ideológico. O relato dos acontecimentos nunca pode ser neutro, pois implica invariavelmente uma opinião sobre a im- portância e o significado destes. Organizado pelos professores Sergio Miceli e Jorge Myers, este é um dos estudos mais com- pletos e detalhados da literatura memorialística produzida na América Latina no século XX. Em conjunto, o objetivo dos 37 ensaios – sobre autores e intelectuais do Uruguai à ilha de Cuba, passando por Argentina, Peru, Brasil, Colômbia, Venezuela, República Dominicana e México – é mostrar a es- pecificidade da escrita memorialística nessa por- ção do continente, que não se reduz à imitação de modelos provenientes da Europa ou dos Estados Unidos e constitui uma tradição própria, marcada pelo ecletismo. Esta coletânea acerta igualmente ao mostrar que a escrita da memória não é um ato meramente individual, mas um ato social inserido numa cole- tividade que o condiciona no tempo e no espaço. E a decisão de escrever e publicar as vivências e impressões do ou da memorialista interfere nessa realidade. Assim, apontam os ensaios aqui conti- dos, a formação de uma tradição memorialística distinta na América Latina participa da constru- ção de uma identidade latino-americana. Quem sabe, ao tomar conhecimento dela nestas páginas, o Brasil, ao contrário do dito popular, possa não ser mais um país sem memória.

Ficha Técnica