Livro - Palavras que transformam
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Imagine a cena: um amigo presenteia o outro com um livro de receitas. Quando voltam a se encontrar, o doador pergunta se o presente agradou. O presenteado responde: “Bem, não me leve a mal, mas não gostei do livro que você me deu. O roteiro é confuso. Os capítulos não parecem guardar relação entre si. Eu já li algumas dezenas de páginas e ainda não consegui identificar o protagonista da história”. Fica claro que há uma confusão por parte do leitor presenteado. Ele não se aproximou do livro com as expectativas corretas. Tratou um livro de receitas, cujo propósito é obviamente prático, como se fosse um romance. Ainda que leia o livro inteiro e decore cada uma das palavras em suas páginas, nunca conseguirá compreender sua mensagem ou aplicar seu conteúdo de acordo com seu propósito. Eu gosto dessa analogia e a considero útil para pensar como nós abordamos as Escrituras. Muitos de nós cristãos nos aproximamos desse texto carregando expectativas incorretas. Alguns tomam a Bíblia como uma coletânea de preceitos morais. Outros veem nela um compêndio confiável da história humana, um manual cientificamente acurado sobre o passado. Outros ainda a veem como a reunião de documentos religiosos que contêm mitos, prescrições litúrgicas e os mandamentos de uma divindade antiga. Ainda que haja verdades nessas abordagens da Bíblia (há moral, história e religião nela), os cristãos a leem, historicamente, como algo mais. Nas palavras de Karl Barth, na Bíblia encontramos um “estranho mundo novo”. Em suas páginas, há um poder de transformação integral do ser humano. O princípio fundamental para encarar as Escrituras em seu pleno potencial transformador é enxergar aquele que está por trás delas. Na tradição cristã, os textos que compõem a Bíblia, ainda que tão diversos em estilo e natureza, são todos unidos por sua origem comum: são todos Palavra de Deus. Significa que a origem desses textos não pode ser encontrada meramente em seu contexto histórico e em sua autoria humana, mas que há uma fonte anterior que é Deus mesmo. Isso faz tanta diferença quanto saber quem é o autor de uma correspondência que recebemos. Se eu recebesse um cartão de natal na minha casa, mas o remetente se esquecesse de se identificar, eu não saberia a quem agradecer, a quem enviar um cartão em retribuição, e seria incapaz até mesmo de sentir-me amado por alguém específico. O cartão recebido não teria efeito positivo sobre minha relação com ninguém, pois desconheço o autor do agrado. Ler as Escrituras ignorando seu autor é como receber um cartão de natal e não saber a quem agradecer. Em contrapartida, quando tomamos a Bíblia como um presente de um Deus amoroso, encontramo-nos imersos numa relação de amor. Nesse sentido, a Bíblia é um livro completamente diferente de todos os outros. Nela, pela fé, estamos nos encontrando com Deus. Eu sei que esse linguajar causa certa oposição de alguns irmãos. A resistência é compreensível: eles temem que a ideia de um encontro místico com Cristo nas Escrituras diminua os aspectos racionais da interpretação bíblica. Mas quero explicar por que o encontro com Cristo na Bíblia não é uma forma de minimizar a objetividade da interpretação. Pelo contrário, é uma maneira de ampliar ainda mais a compreensão de sua mensagem. Recorro, mais uma vez, a uma analogia postal: pense num soldado no front de batalha que recebe correspondências da noiva, que permaneceu na terra natal. O envolvimento do soldado com aquele texto é profundamente sentimental e relacional. Por meio daquelas correspondências, os nubentes estão se relacionando verdadeiramente. Isso não diminuiria em nada o zelo do soldado pelo sentido da carta. Ele se dedicaria incansavelmente a lê-la da melhor maneira possível, observando até mesmo a caligrafia de sua amada. A leitura repetida e meticulosa da carta não se opõe ao caráter relacional do texto. Pelo contrário, uma coisa reforça a outra. Da mesma forma, nosso envolvimento apaixonado com Deus nos leva a uma leitura dedicada e atenta das Escrituras, buscando compreender suas palavras do melhor jeito que podemos. Temo que grande parte dos crentes hoje desconsidera o relacionamento com Deus ao lerem a Bíblia. Fazem isso tomando-a como uma cartilha do bom viver, ou como a fonte de um saber teológico despersonalizado. Isso pode indicar demasiada confiança em nossas próprias capacidades. Ver a Bíblia como um mero guia de comportamento pode ser um sinal de que nos consideramos capazes de cumprir o que ela supostamente pede. Desse tipo de interação com o texto surgem indivíduos e comunidades centrados no julgamento e no preconceito. Em outro aspecto, ver as Escrituras como a fonte de um saber distintivo pode nos levar a altivez intelectual e um sentimento de autossuficiência.

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